Estúpido cupido

Do joelho pra baixo a chuva molhou a calça jeans inteira e a meia enrugou o pé que calçava um clássico calçado de couro de três listras clássicas, calçado desde os anos 90. Caminhou por muito, e de caminhar em caminhar só, caminhar virou a rotina de seus pés,  ser só passou a ser seu único presente . E com chuva a composição incluía chapéu e sobretudo marrom em veludo cote-lê. Incluía céu branco, tempo e vento frio, solidão e emoção (sem o menor sentido!) de romance inativo e por isso mesmo, muito frio principalmente ao deitar e cobrir-se no edredom sobre a manta de listras em roseados e cinzas escuros. No mais profundo de seus pensamentos queria entender a funcionalidade do desamor.

Seus pés criavam bolhas nos calcanhares, o pé esquerdo era definitivamente maior que o direito e havia uma problemática com os calçados novos. Com os calçados clássicos não mais, pois adquiriram o formato de seus pés. Ambos os pés tinham problemáticas unhas.

A metade amor de si se convencia que estava estupidamente equivocada e a outra metade estava convencida que já nem sabia pra quê amar. Que assim como seus pés, uma das metades amor de si era maior que a outra. Essa era a metade que rumava seus passos calados, queria chegar em casa para repousá-los mas adiava o descanso. Queria os pés como coração, que o coração de pernas pro ar - seus pés lidavam com um esforço diário muito maior, e ainda assim doíam menos.

No jeitão, a mochila quase nunca vazia, bens de consumo adquiridos com esforço-parcelados, para pseudo-entreter e não fazer reparar demais nos odores, nas caras cansadas e brasileiras do mudo-trem-um mundo em movimento, nas pessoas de diferentes cheiros, sebos e cores, onde é comum ignorar o outro e conviver diariamente com coletivos de bactérias bizarras, sinfonia de tosses, resquícios de ranho invisíveis de espirros no dedo e todo o tipo de vírus num ar disputado a cada estação. Mas, vibrar e curtir o som no talo é a satisfação silenciosa procrastinada ao isolamento que o conforto do consumo pressupõe.


Metrópole a esta altura é coisa pra viver sozinho, triste e mudo por um tempo, quando a dureza só oferece aspereza ao toque e o consumo existe pra enganar ausência. Era o tempo de expandir sua individualidade a um par de fones de ouvido enquanto o estúpido cupido surdo, não ouviu direito o apelo por calor seguro e um quente colo. 

Neste dia, lhe chovia por dentro. Que estrago!
Mas o desprezo não doía. Em tempos difíceis, era ilha deserta (na esquina da São Paulo com a Bahia.) 

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